Antes de mais nada, gostaríamos de explicitar as razões pelas quais não publicamos esta nota anteriormente. A Marcha das Vadias – DF (MdV-DF) é composta por um grupo muito grande e diverso de mulheres que se organiza de forma horizontal para a construção da marcha. Entendemos que as expulsões realizadas, sempre polêmicas pela sua complexidade, demandavam uma discussão aprofundada e de qualidade. Assim, garantiríamos que a nota fosse o resultado de uma construção coletiva, consciente e responsável, e não de um posicionamento leviano ou hierárquico, partindo de poucas.
Esse debate foi energicamente realizado desde o dia de realização da Marcha (22/06) e se estendeu durante toda a semana seguinte. Tivemos também o auxílio de profissionais que trabalham com populações em situação de rua, que muito nos ajudaram nesse processo de reflexão e a quem agradecemos profundamente pelos diálogos e críticas extremamente válidas, que apenas começaram.
Para entender o ocorrido na Marcha das Vadias DF de 2013, é preciso compreender um pouco da nossa organização, que é dividida nas seguintes comissões: debates, comunicação, agitação/mobilização, trajeto e segurança.
Sobre a comissão de segurança da Marcha das Vadias do DF
O objetivo principal da comissão de segurança é garantir que a Marcha seja um espaço de conforto para as mulheres que dela participam e, também, de solidariedade feminista (tendo em vista que, desde a primeira marcha, recebemos ameaças recorrentes de agressões e “estupros-surpresa”). Para isso, utilizamos desde a primeira marcha (em 2011) o “escracho” como instrumento de ação, o qual consiste na publicização e expulsão de agressores por meio de gritos e buzinadas.
Frisamos que essa estratégia é compatível com os sentimentos que motivaram e possibilitam, ainda hoje, a própria existência da Marcha enquanto movimento (uma participação política múltipla em significados). Entre incontáveis outros fatores, os sentimentos de empoderamento, solidariedade e autorrealização (denominado por quem nos oprime como vadiagem, putaria ou sem-vergonhice) é parte fundamental da energia da MdV-DF. Nossa comissão de segurança preserva tal energia.
Quantas vezes os depoimentos de mulheres vítimas de violência são colocados em dúvida? Quantas vezes as escolhas não compatíveis com a cultura do assujeitamento feminino são utilizadas para nos culpabilizar pelas diversas violências que sofremos? Quantas vezes a cultura sexista e racista soma-se às discriminações de classe, região, idade, religião e outras na expressão de violências às mulheres?
Essas perguntas foram levantadas, escritas e gritadas em cartazes, corpos e vozes durante a Marcha das Vadias-DF de 2013. No entanto, a mesma problematização não foi feita em relação aos possíveis agressores. De fato, na hora da marcha, quando uma integrante da comissão de segurança ouve a buzina, segue imediatamente para o local da agressão no sentido de apoiar a ação das demais companheiras. Não questionamos a ação das outras integrantes na hora por entendermos que, se a buzina foi apertada, uma violência sexista ocorreu. Seguimos a compreensão de que “mexeu com uma, mexeu com todas”.
No caso de mulheres agressoras, decidimos conjuntamente a metodologia de dialogar com elas para que se retirem da marcha, já que, naquele ambiente dividido por vítima e agressora, a primeira se encontraria muitas vezes incomodada e com receio de continuar marchando. Essa decisão foi tomada depois de muitas discussões e de nos depararmos com agressoras na 1ª MdV-DF (2011). Naquela fase, salientamos um recorte de gênero fundamental, mas ainda não tínhamos pensado sobre outras ramificações, como homens que estivessem em situações mais vulneráveis e fossem agressores.
Durante a marcha, orientamos xs participantes a denunciarem caso houvesse algum tipo de violência sexista. Abaixo, o panfleto distribuído ao início da Marcha 2013:
Sobre a expulsão de homens negros em situação de rua
Diante da exposição de um vídeo sobre a expulsão da Marcha de um homem negro, em situação de rua e aparentemente sob efeito de álcool e/ou outras drogas, foram feitas inúmeras críticas, acolhidas seriamente por nós. É importante explicar que a situação ocorrida não foi completamente apresentada no vídeo e alguns relatos. O vídeo mostra apenas um fragmento e um ângulo do que aconteceu e propõe uma interpretação limitada da cena.
Algumas críticas como “o homem só estava levantando a camisa” ou “elas não deixavam ele sair dali” nos soaram simplistas diante, inclusive, do próprio vídeo, que mostra o homem em questão levantando a blusa e, também, tentando abaixar a bermuda, sendo agressivo. Mostra, igualmente, o círculo feito pela mídia, que formou uma barreira impedindo a saída dele da Marcha.
Minutos antes do momento captado no vídeo, o mesmo homem já havia gritado para uma manifestante: “levanta sua saia, quero ver sua bucetinha”. No momento da chegada da comissão de segurança ao local onde ele estava, o homem xingava uma manifestante, ameaçando bater nela com a muleta. Diante da situação, uma escolha foi feita: a buzina foi acionada e houve a tentativa de retirá-lo da Marcha – ação padrão da comissão de segurança nesses três anos de Marcha das Vadias, como comprovam as imagens abaixo:
Dois momentos de expulsão de agressores na Marcha das Vadias-DF: a primeira em 2012 e a segunda nesse ano, minutos antes da expulsão do homem em situação de rua. (Fotos: Túlio Fortuna e Nilton Kaz)
Esse homem foi expulso exatamente da mesma forma que um fotógrafo branco havia sido expulso poucos momentos antes, por ter oprimido e constrangido algumas manifestantes (na foto acima, à direita). O que motivou o aperto da buzina não foram questões raciais, mas sim o fato de ele ter sido considerado um agressor naquele momento. Temos inclusive outro vídeo, filmado mais de perto e em outro ângulo, com os momentos que antecedem a gravação divulgada. Nele, há cenas em que o homem pega no pênis e ofende as meninas que estão à sua frente, como fica explícito na imagem abaixo:
O vídeo acima mostra que quando várias mulheres se reuniram buzinando e gritando para que ele saísse, ele virou de frente pra elas, pegou no pênis e ofendeu-as repetidas vezes. Em seguida, virou-se de costas para as mulheres e, ao notar a presença de muitas câmeras à sua frente, levantou a blusa e começou a mostrar a barriga. No momento em que ele fez menção de abaixar a bermuda e expor a genitália, uma senhora negra disse a ele que não fizesse isso e levantou em sua frente um cartaz (que denunciava a polícia racista e o genocídio da juventude negra). Ele bateu no cartaz, virou-se de costas e tentou se retirar dali, mas a barreira de fotógrafxs e cinegrafistas que se formou em frente à cena o impediu. É importante ressaltar que não foram as manifestantes que o impediram de sair, visto que nós pedíamos justamente pra que ele se retirasse: quem impediu a passagem dele foram xs fotógrafxs da imprensa. Ele fez sinal para que xs fotógrafxs abrissem passagem, mas ninguém se moveu. Foi então que uma integrante da comissão de segurança abriu passagem entre xs fotógrafxs e ele conseguiu sair. Optamos por não divulgar esse outro vídeo para não expor ainda mais a identidade desse homem, que já foi exposto a milhares de visualizações pela ação da MdV e pela repercussão do vídeo na internet, mas nos dispomos a apresentar o vídeo aos grupos que tiverem interesse em ter uma visão mais ampla do ocorrido e colaborar conosco nos debates e reflexões sobre o caso.
O que percebemos é que a violência sexista praticada por esse homem não foi problematizada na maioria das críticas às quais tivemos acesso. Foram críticas que pareceram desconsiderar ou minimizar a possibilidade de opressões e agressões sexistas que ocorreram antes do ponto em que o vídeo começou a ser gravado. A invisibilização e a hierarquização de uma opressão em detrimento da outra pode ocorrer quando uma rede complexa de opressões entra em conflito, tornando possível que uma das opressões anule as demais. Por outro lado, esse foi também o grande erro de ação da Marcha das Vadias do DF, no caso específico desse homem em situação de rua. Um erro que tem como origem uma série de outros erros estruturais na própria formação da MdV-DF, como, por exemplo, a dificuldade na desconstrução de privilégios que fazem parte do cotidiano de muitas de nós, o que muitas vezes nos leva a reproduzir as opressões que buscamos combater.
Considerando que aquele homem também é constantemente oprimido – pela sua classe, sua situação de rua, sua saúde debilitada e sua cor – não poderíamos agir de maneira a igualá-lo a um agressor qualquer. Tivemos alguns cuidados durante a passagem da marcha, como o de proteger as pessoas que dormiam no chão da rodoviária para que não fossem pisoteadas pela multidão ou de avisar antecipadamente todxs comerciantes da rodoviária que ali passaria uma marcha feminista. Acreditamos, portanto, que faltou dialogar também com a população em situação de rua, pois, ao marchar pelos espaços públicos da cidade, estamos também entrando no ambiente em que essas pessoas vivem. Não percebemos que a situação de vulnerabilidade na qual ele se encontrava deveria ter sido motivo suficiente para que ele não fosse jogado na mesma “caixa homogênea” em que colocamos todxs xs outrxs agressorxs.
Na verdade, em três anos de Marcha, essa “caixa” nunca havia sido devidamente problematizada. Por isso entendemos que todas as críticas, inclusive aquelas com as quais não concordamos inteiramente, têm sido importantíssimas para a nossa caminhada de luta por um mundo livre de opressões. Sabemos que é uma longa caminhada e que passa por processos constantes de (des)construções, auto-reflexão e auto-crítica, além de muito diálogo com outros movimentos. Mas é uma caminhada que precisa ser construída coletivamente, procurando superar as resistências apresentadas por nossas identidades e subjetividades.
Entendemos que a ação de expulsão com buzinas (“o escracho”) foi excessiva em relação a esse homem, na sua situação de vulnerabilidade, e que devemos repensar a forma de abordagem de possíveis agressorxs em situações similares. Também entendemos que essa reflexão não deve ser apenas sobre como a organização da MdV-DF e as manifestantes agiram, mas deve alcançar também como isso se reflete na nossa sociedade, em especial pela postura da mídia e da PM na situação.
No momento da expulsão do fotógrafo branco, minutos antes, a mídia não fez a mesma cobertura que ocorreu na expulsão seguinte. Quando o homem branco foi expulso, em vez de uma barreira para encurralá-lo, uma repórter da grande mídia tentou entrevistá-lo para ouvir “seu lado da história”, o que a comissão de segurança impediu. Nessa ocasião, a polícia cercou o fotógrafo branco para “protegê-lo” de um eventual ataque da Marcha. Nota-se, mais uma vez, a presença do racismo estrutural que fez com que o branco fosse protegido e acolhido pela polícia e pela mídia, que nada fizeram para proteger o homem negro marginalizado: ele, ao contrário, foi exposto pela mídia e criminalizado pela ação da PM.
Sobre a Marcha das Vadias no DF
Estamos nas ruas há três anos. Inicialmente, éramos apenas um grupo de mulheres na sua maioria branca e classe média que sentiram a necessidade de ir às ruas para denunciar as mais variadas formas de machismo e violência contra a mulher. Já no segundo ano, percebemos a necessidade de dialogar de maneira mais ampla. Além de termos agregado mais diversidade de mulheres (especialmente lésbicas, mulheres mais velhas, negras e mulheres da periferia), percorremos caminhos de estratégias para que a marcha fosse cada vez mais plural e atenta à existência dessa pluralidade, e foi justamente o que tentamos trabalhar na nossa campanha fotográfica “Feminista por quê?” e no vídeo irônico “Ai, que vadia”. Mas as recentes críticas colaboram para nos mostrar, mais uma vez, as nossas falhas de alcance, assim como o debate com mulheres trans e outras formas de vivenciar a identidade de gênero.
Em 2013, sentimos a urgência de nos posicionarmos diante de alguns temas mais específicos, como o Estatuto do Nascituro e a legalização do aborto, no vídeo “O corpo é meu”. Quisemos reivindicar cada vez mais o fim da cultura do estupro (no vídeo “Não estupre!”) e o nosso direito à cidade, com a campanha fotográfica “A cidade é nossa”, nos somando às manifestações que ocupam as ruas de todo o país.
Nesse esforço de desconstrução de privilégios/opressões e pensar diversidades, tivemos a criação de alguns Grupos de Trabalho para o aprofundamento de discussões sobre raça e lesbiandade, como o GT de mulheres negras e o GT de mulheres lésbicas, porém sem muito sucesso. Tivemos falhas de diálogo e, desde o ocorrido na última marcha, assumimos a postura de extinguir o GT de mulheres negras, para que seja evidenciado que o racismo opera na racialização de todas as mulheres: brancas, negras, indígenas, entre outras. Por isso, entendemos que o debate racial deve ser abraçado por toda a coletiva, com aprofundamento teórico, respeitando as experiências de cada mulher negra que faz parte da coletiva.
Algumas de nós – mulheres negras – nos sentimos profundamente magoadas pelas maneiras antifeministas com que outras companheiras negras nos acusaram, questionando não apenas nosso feminismo como também nossa militância e nossa composição dentro da Marcha. Questionando também nosso livre arbítrio de poder compor um movimento que seja plural, que se expressa com a diversidade de muitas mulheres e que caminha com altruísmo e sororidade com as diversas companheiras que participam de outras coletivas e movimentos sociais. Por outro lado, enquanto mulheres negras, sentimo-nos extremamente felizes com a disposição de outras companheiras negras em colaborar com nossas reflexões, inclusive, expondo seus processos de construção identitária, tanto dentro quanto fora da militância, e ponderando sobre as conjunturas de uma luta anti-racista entre diferentes pertencimentos etnicorraciais.
Aos poucos, estamos nos descobrindo como um coletivo mais permanente, com a necessidade de ações e reflexões para além da organização da marcha em si. Neste ano, por meio de um longo processo de amadurecimento interno, nós conseguimos construir nossa Carta de Princípios, com o intuito de sistematizar algumas discussões já consolidadas. Desde 2011, temos desenvolvido atividades feministas que ultrapassam o dia do ato: oficinas, cineclubes, retomes, debates, encontros, notas, seminários e conversas. De forma muito espontânea, fomos nos sintonizando.
Para muitas de nós, a Marcha das Vadias foi o primeiro contato com a militância social ou com os feminismos. Ainda temos muito a aprender e refletir sobre o combate aos preconceitos para que consigamos construir coletivamente um outro mundo, livre de opressões. Acreditamos que reconhecer nossos erros é o primeiro passo para esse aprendizado. Mas entendemos, também, que o que nos move é o combate a uma violência concreta, que vivenciamos e sofremos cotidianamente, e deslegitimar nossa luta e indignação, ou minimizar a opressão que sofremos, não pode ser o caminho para verdadeiras transformações sociais.
Pretendemos, com essas reflexões, dar um passo adiante na consolidação dessa coletiva de mulheres feministas. Para isso, contamos com apoio e abertura para dialogarmos com todxs aquelxs que foram críticxs à nossa atuação, nesse e em outros episódios. Podemos estar em frentes de batalha diferentes, mas, quando se tratar do combate às opressões e à desconstrução das desigualdades sociais, queremos somar forças sempre que possível.
Marcha das Vadias-DF, 2 de julho de 2013